#126 - Conversas analógicas e escuta verdadeira
Uma crônica antiga, que conversa com o mundo de hoje
Foi no Traço de União, tradicional e extinta casa de samba do Largo da Batata, em São Paulo. Eu tinha meus vinte e poucos anos. No meio da multidão eufórica, vejo-o de longe. Lindo. O deus do samba, do pagode, do ziriguidum. Desvio a atenção que dava para minha amiga para focar em outro lugar: nos seus olhos abrindo espaço na multidão.
— Oi — disse, abocanhando-me com o olhar.
— Oi.
— Qual seu nome?
— Andrea. E o seu?
— Fábio.
— Prazer em te conhecer, Fábio.
— O prazer é meu.
Dito isso e apenas isso, sinto o calor de sua aproximação. Sem que eu pudesse reagir, ele segura na minha cintura e se inclina. Sua boca procura a minha, que descansava desprevenida.
Empurro-o, não com a força que deveria, segundos antes de seus lábios tocarem os meus.
— Ei, calma. Acabamos de nos conhecer. Nem conversamos, nem nada.
— Conversar?
— Sim, conversar.
— Ah, gata… Quer conversar entra no Messenger.
Eram os anos 2.000. Hoje ninguém mais usa Messenger. Antes usássemos. As relações estão cada vez mais digitais enquanto eu, presa no meu passado analógico, ainda quero conversar.
Não aprendi dizer adeus
Falando em conversar, estou lendo o livro A arte da escuta, da Julia Cameron (a mesma de O Caminho do artista), junto com um grupo de mulheres, com a mediação da , e tem sido uma experiência bem bacana.
Neste livro, Julia fala sobre escutar como forma de autoconhecimento, com um método capaz de nos conduzir um novo nível de conexão pessoal e realização criativa, através de exercícios práticos, durante 6 semanas.
A cada semana, ouvimos o mundo a nossa volta, o outro, o nosso eu superior até chegarmos em nós mesmas.
Aprender a escutar com atenção é um movimento contrário ao que vivemos hoje, em um mundo altamente conectado e cheio de interferências. Quando foi a última vez que você ouviu alguém sem interromper? Ou sem ficar matutando a resposta antecipadamente? Ou sem julgar?
Tenho uma amiga que é uma pessoa incrível, mas que não sabe escutar. Interrompe a todo instante para dizer o que ela acha, o que ela faria, como é na casa dela, etc. Às vezes não consigo terminar uma frase. Às vezes falo um pouco mais alto para poder terminar. É tão cansativo que prefiro deixá-la falar.
Tenho um familiar que, antes de entender o que estou querendo dizer, já quer me dar uma solução. Às vezes não quero solução. Quero só ser ouvida.
As pessoas têm fome de serem notadas, fome de serem cuidadas, fome de serem reconhecidas. A escuta, a verdadeira, faz tudo isso. Quando a gente presta atenção real nas pessoas, elas sentem que temos ânsia de ouvi-las, e assim experienciam um generoso senso de lar, onde são escutadas.
Julia Cameron - A arte da escuta
Óbvio que muitas vezes me peguei pensando: será que às vezes não sou eu que faço isso? Com certeza faço sem perceber. A gente vive nessa ânsia de querer falar, não é mesmo? Vamos ver se “A arte da escuta” me ajuda neste processo.
Te conto depois.
Para acompanhar essa leitura:
Um palpite a qualquer hora, da Gabi Fagundes
Sendo uma desconhecida feliz, da Pati Burger
Será que podemos ter tudo?, da Ju Clorado
Sobre pausas, recomeços e o tal do ócio criativo, da Dani Trolesi
Quando minha mãe morreu, da Gabi Miranda
As pessoas prestam, da Marina Cyrino Leonel (plus: pré-lançamento do seu livro)
Esse aqui também
Uma reunião de algumas crônicas dessa newsletter em um e-book disponível na Amazon e grátis para quem tem o Kindle Unlimited.
Mas deixo você ir
Essa foi mais uma edição da newsletter Andrea Me Conta.
< palmas >
Obrigada mais uma vez por me ler até aqui. Antes da próxima edição, divirta-se com o nosso Vale a Pena Ver de Novo:
como faz falta a capacidade de ouvir! parece que todo mundo só quer falar e falar e falar… precisamos resgatar a virtude da escuta atenta.
Com o tempo, parece que as pessoas estão com mais dificuldade de se comunicar né?!