#145 - Cinturones abrochados — lá vou eu
A beleza inexplicável das palavras
“Cinturones de seguridad abrochados” - uma vez comentei com uma chilena que essa é uma das frases mais legais da língua espanhola. Ela riu muito, olhando para mim como se eu fosse um E.T. Como é que alguém pode ver graça em “cintos de segurança afivelados"?
“¿Qué más?”, me perguntou.
“Por supuesto”, respondi.
Mais risadas. Ela não entendendo nada e eu não entendendo como ela poderia não entender. “Por supuesto” é, sem dúvida alguma, uma das melhores expressões em espanhol. Acrescente aí um tempero latino, uma voz um tanto rouca no estilo Antonio Banderas e diga: “por supuesto".
E daí que “por supuesto” significa “é claro”? Se me disserem isso ao pé do ouvido, chego a arrepiar. A sonoridade é sexy, cheia de bossa e jalapeño. Assim como “cinturones abrochados” tem uma graça, um deboche… Especialmente quando o “abrochados” sai da boca como uma bola de chiclete que estoura no ar.
Minha mãe fala pouquíssimo de inglês, mas conhece inúmeras frases soltas, de tanto assistir seriados americanos. Certa vez, confessou-me, despretensiosamente, que adora dizer “unbelievable”. Olhei pra ela a tempo de testemunhar sua exclamação feliz:
“It's unbelievable"!
Sim, mãe, é quase que inacreditável nós gostarmos tanto assim das palavras e dos seus sons. No caso das palavras estrangeiras, acho que gostamos também do pequeno desafio de dizê-las, explorando sons pouco comuns na nossa língua mãe, o português brasileiro.
Vou até um pouco além na minha teoria. Acho que, quando estamos aprendendo uma língua nova, o fato dela não ser nossa língua nativa nos permite descolar pronúncia de significado. Pode até ser que você ache “cinto de segurança afivelado” algo muito bonito e bacana de se dizer, mas há de convir que não chega nem aos pés de “cinturones de seguridad abrochados”. Tentando falar a frase em espanhol, a gente se esquece do significado e foca no som. A gente canta. Imita o sotaque. Faz graça. Aperta os olhos. Sente-se seduzindo o próprio Banderas.
Existem palavras incríveis na língua portuguesa, é verdade. Adoro algumas, como “patético”. Já experimentou falar “patético” sem fazer caras e bocas, ou sem ao menos mudar a entonação? Eu não consigo.
Mas é engraçado que, em alguns contextos, palavras e frases em idioma estrangeiro soam tão bem, que não adianta traduzir. Elas não têm o mesmo efeito. Paula Fernandes que o diga. Não encontrando o que colocar no lugar de “shallow now”, resolveu deixar assim mesmo.
Muitas vezes há como traduzir, mas elas fazem parte da personificação do interlocutor. É assim nos ambientes corporativos, por exemplo, em que muitos executivos não conseguem falar sem seus jargões. “O brainstorming deu insights valiosos para o game plan que vai ajudar a chegar nos KPIs que os stakeholders esperam”. Seria chique se não fosse brega. Sim, palavras estrangeiras podem tanto nos dar prazer quanto nos fazer sentir vergonha alheia.
Quando eu tinha uns vinte e poucos anos, meus amigos diziam que eu falava igual puxador de samba enredo, com as pausas e as separações de sílabas característicos. Por exemplo:
“E lá vou eu
Lá - vou - eu”.
E lá eu ia:
“Gente, isso é inacreditável. I-na-cre-di-tá-vel".
“Sim, é verdade, eu juro. Ju-ro.”
“Sério isso? Men-ti-ra”
“Não-é-pos-sí-vel".
Ainda tenho um pouco essa mania de separar sílabas, como se, assim, eu conseguisse dar mais ênfase às interjeições e espantos do dia-a-dia. Ritmo, bebê. Ritmo dá cadência ao discurso. Do ritmo surgem os sentidos.
É muito gostoso brincar com as palavras, seus sons e significados. Eu, pelo menos (e minha irmã vai me chamar de nerd), acho que palavras são divertidas, encantadoras e um tanto misteriosas. Causam-me intriga desde que Marcelo perguntou ao pai porque não se chama marmelo ou martelo. E por que a bola não chama bolo. Quem se lembra de Marcelo, marmelo, martelo, aquela incrível literatura da pré-escola? Aquele garoto sabia pensar as palavras como ninguém.
Ao escrever essas últimas linhas, corri até minha estante para pegar o livro de poemas de Ana Martins Marques que tem como título “Risque esta palavra". Não sou de ler poesia, mas gostei bastante da escrita da autora. O que me fez buscar este livro é que lembrei que uma das suas quatro partes é denominada “noções de linguística”. Nela, o primeiro poema começa assim:
“No princípio toda língua é estrangeira”
Lembrei-me tanto das crianças aprendendo a falar e do quanto eu gostava das pequenas confusões que eles faziam.
“Tá doendo minha gengibre (gengiva)”
“Hoje tem aula de círculo (circo)”
A língua, para uma criança pequena, ainda é estrangeira. Ainda soa bonito. Ainda é uma descoberta. E elas se sentem super bem quando usam uma palavra que acabaram de aprender. Emanam uma sensação de vitória. Igual quando conseguimos nos comunicar em outro idioma. Ou quando traduzimos o que o outro está querendo dizer mesmo sem entender todas suas palavras.
Existem ainda as palavras que tem um significado à parte. A língua japonesa é cheia dessas. Tsundoku, por exemplo, é um termo que descreve o hábito de comprar livros e empilhá-los sem nunca lê-los. Ikigai, por sua vez, significa um propósito de vida. E wabi-sabi, encontrar beleza na imperfeição e simplicidade.
É lindo, não é?
É como saudades, que é muito maior que qualquer “miss you” sem graça.
Recentemente comprei o novo livro da Noemi Jaffe, Te dou minha palavra. Ainda não li, mas me encantei com o pouco que ela falou dele em uma das mesas que assisti na Flip. Trata-se de um livro de memórias, em que ela percorre sua infância e adolescência como filha de imigrantes judeus que sobreviveram a guerra. Mas o que me intrigou muito foi o fato de Noemi usar a linguagem e o papel das palavras como parte da formação da sua identidade. Amei quando ela disse que ouvia várias línguas em casa (ídiche, alemão), cujos sons só faziam sentido no seu contexto familiar, assim como eu ouvia palavras em árabe que só fazem sentido no contexto da minha casa. Até hoje, quando usamos as poucas palavras que sabemos, é como se falássemos um dialeto só nosso, que restou como herança dos meus avós.
Talvez seja isso: no fim, todas as palavras são uma tentativa de dizer quem somos. Vamos colhendo por aí os “por supuesto”, “unbelievable” e “saudades” da vida e nos preenchendo dos sons que nos cabem, nos transformam e contam histórias sobre nós mesmos. Vem comigo?
Cinturones abrochados! Lá-vou-eu.
Engravidei
O Engravidei é meu primeiro romance, já conhece a história?
E se você pudesse revisitar quem era há dez anos?
Às vésperas do décimo aniversário de seu primeiro filho, uma mulher redescobre o blog que criou durante a gravidez – um espaço onde despejava suas dúvidas, medos e emoções avassaladoras. Revendo suas palavras, ela encontra mais do que lembranças: encontra a si mesma. Entre confusões hilárias e momentos absurdos, ela reflete sobre as transformações profundas que a maternidade trouxe, comparando a mulher que é hoje com a grávida assustada que tentava, sem sucesso, controlar o caos.
Ele está disponível no site da Editora Caravana ou em e-book para o Kindle na Amazon. Aliás, quem é assinante do Kindle Unlimited pode ler de graça. ;)
Não aprendi dizer adeus
Semana passada estive em Santiago do Chile, na casa de uma amiga querida. As crianças são muito amigas e queriam passar o Halloween juntas, num estilo parecido com o americano: crianças fantasiadas passando de casa em casa no condomínio, diferente aqui do prédio, que elas ficam descendo os andares pela escada. Foi uma delícia e ainda contribuiu para nascer a ideia dessa crônica, olha que legal.
Mas eu não posso não falar de Halloween. Morro de vontade de passar nos Estados Unidos, passear pelas casas carregando meu baldinho de doces e curtindo as produções das pessoas e das casas. Cresci assistindo a produções hollywoodianas, né?
Então, como hoje a crônica foi sobre linguística, compartilho com você uma edição antiga, de 2023, em que falo do episódio de Halloween de Snoppy. Vai lá ler que está bem bacana.
***
Agora vamos às dicas dessa semana:
📚 Livro:
Estou lendo A segunda vinda de Hilda Bustamante, da autora argentina Salomé Esper e estou gostando muito. A história tem um realismo mágico que é comum na literatura latino-americana, mas a autora escreve de maneira tão bonita, com tanta delicadeza, que o impossível realmente parece acontecer. A história conta sobre Hilda Bustamante, que, um ano depois de morta, ressuscita, Hilda se livra do caixão, da terra e dos vermes e vai à igreja da cidade para tocar o sino, antes de ir ao encontro de seu marido, Álvaro. Estou adorando o enredo, a escrita e as personagens.
🎙️Podcast
Não sei como chegou até mim o On Purpose with Jay Shetty, mas gostei bastante. Em todos os episódios, ele fala sobre saúde e bem estar, tanto físico quanto mental. O episódio que me chamou atenção foi o que ele entrevista Novak Djokovic. É sensacional ver a vulnerabilidade no maior tenista de todos os tempos e saber como ele trabalha sua mente para criar resiliência, lidar com a pressão e crescer na carreira.
🏖️ Por aí
No TikTok eu tenho acompanhado o Gringo Baiano. O garoto é filho de uma baiana com um inglês e convive entre os dois mundos. O pai é um advogado criminalista fofooooo, que entra na dança do filho, participa dos vídeos e representa o melhor da cultura britânica, contrastando com a brasileira. Choro de rir.
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Aqui no Substack eu gosto muito da newsletter English from Brasil, da
, que sempre tem um conteúdo bacana paraa gente praticar e aprimorar o inglês.Você gostou do remake de Vale Tudo? A
não. rsUma decoração inusitada no estúdio de pilates da
Esse post da
deu o que falar. Eu mesma me meti nos comentários para dar meus pitacos: Mulheres inteligentes não engravidam.O que é ser criativo de verdade, por
Mas deixo você ir
Nos vemos na próxima edição!
Um beijo,
Andrea
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Adoro essas palavras trocadas ou inventadas pelas crianças. Tinham algumas que eu nem corrigia porque acha tão bonitinho…obiamente ao invés de obviamente, paqueça ao invés de cabeça, picoca ao invés de pipoca...e por ai vai...