Era no quarto da minha avó que dormíamos quando passávamos as férias em sua casa, em Ribeirão Preto.
Meu primo, o favorito, deitava-se com ela na cama e minha irmã e eu ficávamos em colchões no chão. Com todos acomodados e a luz apagada, ela dava início ao ritual de sempre.
“Com Deus eu me deito…”
Falava pausadamente para que repetíssemos a oração na sequência. Emendava pedindo ao anjo da guarda, meu bom amiguinho, que nos conduzisse pelo bom caminho e, pouco tempo após seu boa noite, já era possível escutar o ronco cansado da avó que ficava com os netos nas férias.
Eu era sempre a última a pegar no sono. Fitava o teto, perdida em pensamentos até não aguentar mais, o que às vezes era bem chato, mas fazer o quê? Nunca fui de dormir fácil. Mas o que eu gostava mesmo, era de adormecer por último nas noites quentes de verão.
Com o calor da cidade, os ventiladores não davam conta de nos refrescar e era preciso abrir a janela. Era aí que a mágica acontecia.
Vovó morava em frente a uma pracinha e, de lá, irradiava uma luz amarela para dentro do quarto. O curioso era que o ambiente não se iluminava completamente, mas, no teto, a luz formava o desenho de uma nova janela, com sombras desenhando seu contorno e suas barras de proteção.
Meus olhos se pregavam nessa forma perfeita de luz e sombra e eu aguardava, com certa ansiedade, que algum carro passasse por ali e que sua sombra fizesse piscar a a janela no teto.
A rua de paralelepípedos sempre anunciava quando havia um veículo a caminho, com o som tremido dos pneus pulando no pavimento sem asfalto.
Era os anos 1980, não havia o movimento que há hoje em dia. Os carros custavam a passar e raramente vinha mais que um de uma vez. Isso tornava a espera mais especial e me mantinha alerta, esperando a próxima dança das sombras sobre nossas cabeças.
Mas criança não aguenta ficar muito tempo acordada e eu adormecia no meio da brincadeira.
Ao acordar, já de manhã, percebia a janela fechada e sabia que vovó havia zelado por nosso sono, impedindo que a luz do dia nos despertasse.
O tempo passou. Virei adulta. Vovó foi morar no céu. Minha tia se tornou a dona da casa e daquele quarto, onde eu tinha visto minha velhinha consciente pela última vez.
Um belo dia, de passagem por Ribeirão Preto, hospedei-me na casa da tia. Ela, preocupada com meu conforto, cedeu-me o quarto, mesmo depois de eu insistir não ser necessário. Era a primeira vez que eu dormiria na casa da vó, sem a vó.
Deitei-me, liguei o ar-condicionado que a casa ganhou nos anos 2000, mas não dormi. Senti falta dela. As saudades me espremeram por dentro e senti grossas lágrimas começarem a rolar bochecha abaixo.
Senti-me sufocada. Sozinha. Encurralada em um quebra-cabeças sem a última peça. O ar-condicionado barulhento me também me perturbava. Desliguei-o e, como se para voltar a respirar, escancarei a janela.
Ainda chorando, voltei a me deitar, sentindo o travesseiro molhado das lágrimas que não paravam. De repente, um som conhecido. Rodas trepidando no paralelepípedo resistente aos anos me tiraram do estado de melancolia que me encontrava. Olhei para o teto. A janela iluminada estava lá. O carro passou e a fez piscar. Agucei meus ouvidos para aguardar o próximo. E o próximo. E o próximo. Não devo ter me demorado em pegar no sono, relaxada.
Ao acordar, senti meu coração se expandir: A janela estava fechada.
E o marketing, Andrea Cristina?
O texto acima poderia ser um roteiro de propaganda? De que?
Colchões e travesseiros? Planos funerários ou seguro de vida? Serviços de arquitetura, que reforça o papel do ambiente nas memórias afetivas?
A verdade é que, hoje em dia, uma propaganda com um bom roteiro, engaja. E, para mim, a chave para um bom roteiro é pensar mais na pessoa que na persona. Saber que humanos são parecidos em suas emoções e sentimentos. Que passam por coisas parecidas, como o nascimento de um filho, a entrada na faculdade, a perda de um ente querido.
Hoje se fala muito do marketing baseado em dados. Tudo é feito com o algoritmo na cabeça. Com os números das pesquisas. Com as críticas e sugestões feitas pelo focus group. Isso tudo é muito legal e eu não desmereço a sua importância, mas será que a gente não acaba ficando um pouco engessado? Perdendo nossa capacidade de sentir? Deixando de criar o que a gente quer realmente criar para poder se encaixar na caixinha do cliente, do veículo, dos números?
Esses são meus cinco centavos de marketing hoje.
Para ilustrar uma campanha com um bom roteiro, um dos anúncios mais bonitos que eu vi neste último SuperBowl:
Não aprendi dizer adeus
🤣 Ainda sobre comerciais do SuperBowl, eu AMEI esse aqui do Sticht:
😅 Mais sobre criatividade? O Brasil tem de monte. Olha isso aqui:
📚 Mundo dos livros: Ler ficção faz bem para o cérebro.
📚 Mais livros: acabei de ler A Vida Pela Frente e estou boquiaberta até agora com a história, a narrativa, a delicadeza… Um livro lindo de um amor incondicional de um garoto muçulmano e uma senhora judia.
Newsletters Superpoderosas
💌 Essa semana li pouquíssimas news. Mas sempre leio a das amigas escritoras e não consigo não indicá-las:
💌 Gabi foi tão verdadeira nas suas palavras. A gente quer rejuvenescer, mas se esquece de viver.
💌 Essa edição da Respondendo a Carrie Bradshaw fez sucesso, não é pra menos.
💌 Roberta arrasou nessa linda edição sobre a relatividade do tempo.
💌 Embora tenha muita rinite, ia adorar ficar encontrando relíquias no quartinho da prima da Marina.
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Mas deixo você ir
O texto de hoje surgiu quando me deram o desafio de fazer uma história infantil com alguma lembrança da minha infância. Não foi uma história infantil, mas foi a primeira cena que lembrei. Agora, ou transformo isso em infantil, ou preciso de outra memória. rs.
Te conto na semana que vem.
Até lá!
Andrea
Que crônica mais sensível. Amei. Alimentou minha alma. beijos
Eu escrevi justamente sobre memórias com minha avó na semana passada... Algumas pessoas próximas me questionam, o que eu pretendo atingir compartilhand memórias tão particulares? Não entendem. As memórias são únicas, mas sentimentos e emoções são universais, são o que nos tornam humanos. Obrigado por compartilhar. E adorei o final, com o tom de mistério sobrenatural.