Peguei meus diários antigos pra ler não tem muito tempo. É esquisito.
Não estou falando da escrita em si. É claro que eu escrevia diferentemente de como escrevo hoje, isso eu já sabia. Mas é esquisito o quanto me soa falso.
Eu escrevo como se alguém que fosse me julgar estivesse lendo, sabe? Depois de um desabafo, vem um agradecimento, porque devo ser grata por tudo. Depois de xingar alguém, vem um elogio. Depois de lamúrias, o regozijo. Depois de cada “não aguento mais”, vem um “vou sentir falta". Puta chatice.
Eu reconheço que, muitas vezes, quando a gente escreve, a gente começa a ver as coisas com mais clareza e termina o texto com outro humor. Mais lúcidos. Muitas vezes com uma resposta de uma pergunta que nos atormentava. Mas não é o caso dos meus diários.
Se eu escrevia sobre uma briga com minha irmã, por exemplo, dava para sentir que eu começava o texto com raiva dela, mas logo depois vinha um perdão que eu não sei de onde saía. Uma declaração de amor que naquele momento não fazia jus ao que eu sentia. Eu sei disso.
Sei disso porque além de a escrita colocar as coisas sob outra ótica, ela também nos expõe. O tom, as vírgulas, as palavras, todos os contrapontos à algo negativo naqueles textos antigos se entregam. São falsos. Eu sinto a falsidade dentro de mim. Eu revivo os momentos ao lê-los e me sinto mal por ter sido falsa comigo mesma. E por me culpar por sentir alguma coisa “ruim” com relação a alguma situação ou alguém. Ou por ter sido infiel ao meu texto. Como pude trair meu texto?
Os textos teriam mais profundidade se eu me permitisse, mas não me permiti. Que pena. Ao lê-los, lembrei-me do medo que eu tinha de que alguém lesse aquelas páginas.
Quem?
Minha mãe? Meu pai? Meu namorado da época?
E o que eles fariam? Desapontariam-se comigo? Por que? Por ser eu mesma?
Uma vez ouvi a Tati Bernardi dizendo em um podcast que quando a gente escreve, a gente arranja briga com um monte de gente. O Lucão comentou algo parecido em um curso. A gente não escreve para agradar ninguém. Hoje eu sei, mas não sabia disso na época em que Britney Spears cantava “I did it again".
“Não aguento mais meu pai. Quando estou em Jau, parece que tenho 12 anos. Ele não me deixa em paz. Pega no meu pé o tempo todo. Reclama quando saio, reclama quando deito, quer que eu siga uma rotina que já não é mais minha. Mas eu amo minha família, amo muito e tenho certeza de que, em breve, vou sentir saudades de tudo isso".
Parte de um texto do dia 10 de janeiro de 2004. Eu morava na Austrália e estava de férias no Brasil. Eu amo minha família, é ÓBVIO, mas sabe quantas vezes eu senti falta disso? Zero! Sentia saudades da minha família? Claro. Muitas! Da PESSOAS. Entende o que eu estou falando? Além disso, quem nunca, em sua adolescência, pensou que não aguenta mais os pais? Precisava sentir tanta culpa, Andréa Cristina?
Os meus textos do passado são cheios de “mas” após um desabafo. Como se eu tivesse uma certa culpa na raiva, no tédio, no nojo, na tristeza. Emoções tão básicas… Por que externá-las me fazia sentir como uma transgressora?
Esses dias, a Ana Holanda comentou no grupo da Comunidade de Escrita sobre um texto da Clarice Lispector. Lembrei-me na hora dos meus diários.
Se eu fosse, eu - Clarice Lispector (Poema)
Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
Incrível como nos faz pensar.
Como eu escreveria, lá em 2004, se eu fosse eu?
Teria eu aqueles pudores todos? Temeria as chibatadas?
Hoje sei que a alegria não significa nada se não existir a tristeza (obrigada, Pixar, por Divertidamente) e isso é um pouco libertador. Tenho permissão para sentir, mas será que posso contar? Posso escrever?
Se eu fosse eu, eu escreveria? O que me impede HOJE de escrever como eu? O que me impede de ser eu? Será que tenho coragem para ser nada além de eu mesma?
E você?
Não aprendi dizer adeus
💔 Adoro escrever de forma mais bem humorada, mas hoje foi o dia da reflexão. Porém, para divertir vocês, fica aqui uma seleção de dates ruins do Núcleo.
🐜 Uma thread no Xuítter do biólogo César Favacho, que teve não sei quantas mil visualizações: ele deixou uma paçoca cair no chão e narrou uma guerra entre formigas. O pior é que li tudo e achei que daria um livro.
👯♂️ Lembra daquele filme Operação Cupido, em que uma gêmea foi morar com a mãe e outra com o pai até que, num belo dia, elas se encontram em um acampamento e resolvem trocar de lugar? Sim, o filme é antigo, é da categoria “Sessão da Tarde”, mas tem uma história fascinante por trás. O Júnior Bueno conta tudo na última edição da sua newsletter, que é uma das melhores dessa internet:
Mas deixo você ir
Com lágrimas no olhar, de tanto pó que tem aqui em Ribeirão Preto, meu endereço esta semana. Só antialérgico na causa.
Obrigada mais uma vez por estar aqui comigo e até a próxima semana!
Um beijo,
- Andrea
Seu texto me fez ficar um bom tempo olhando pro computador e pensando sobre a forma como eu escrevo. Acho que rolou uma pequena crise existencial aqui... Obrigada?! 🤔
Levei um susto quando vi sua News, porque tenho um rascunho guardado com esse mesmo título sobre esse texto genial da Clarice e por um segundo pensei que tivesse publicado sem querer!! Adorei a reflexão, eu não escrevi um diário na adolescência mas acho que daria muita risada hoje em dia se tivesse escrito.