Aproximou-se da mesa para o café, como havia combinado. Os três já estavam lá. Antes de se sentar, já havia percebido que o tom à mesa era confessional. Os amigos estavam debruçados, um em direção ao outro, para que conseguissem ouvir os sussurros de uma conversa sigilosa.
Aquela cena não era anormal. O grupo de amigos próximos costumava compartilhar fofocas de gente conhecida ou não. Por isso, Clarice não hesitou em se sentar. “Cheguei", disse, desabando na cadeira vazia que a aguardava.
Como numa sinfonia, os murmúrios do adagio deram lugar aos altos tons do allegro. O assunto claramente havia mudado para receber a amiga que acabara de se sentar. Marcos aproveitou para perguntar-lhe algo e Clarice, ao discorrer sua resposta, percebeu uma movimentação diferente do outro lado da mesa. De soslaio, viu Carla pegar o celular, escrever alguma coisa e, em seguida, viu a tela do telefone de Isabela piscar. Isabela pegou o aparelho, escreveu qualquer coisa e, depois do barulho de vibração no aparelho de Carla, ambas aterrissaram seus celulares ao mesmo tempo na mesa, com as telas viradas para baixo, como numa coreografia bem ensaiada .
Telefones para baixo, cabeças erguidas, interesse súbito na conversa de Clarice e Marcos e uma empolgação na voz que já não parecia real. Um disfarce mal feito de uma conversa misteriosa. Se Clarice não era o assunto, sentiu-se como se fosse. Mais que isso, sentiu-se excluída.
Fazia tempo que tinha essa sensação de não pertencimento. Justo ela, que sempre se gabou por não ser grudada com ninguém, não formar nenhuma panelinha e por circular bem em diversas rodas. Mas, havia um tempo, sentia-se sozinha, sem amigas. Talvez fosse bom ter uma panela para chamar de sua. Um grupo fechado, em que ninguém entra e ninguém sai. Ou mesmo alguém para quem ela pudesse ligar no meio da madrugada, caso precisasse de ajuda. Será que este tipo de amizade ainda existia?
Pensou na irmã. Ela seria essa pessoa, sem dúvida nenhuma. Mas se ela precisasse de um socorro que exigisse a presença física, como resolver os mais de 300 quilômetros que as separavam?
Também não tinha nenhum vizinho com quem pudesse contar. Nenhum nome vinha-lhe à cabeça. Quem seria capaz de largar tudo para lhe socorrer? Pensou em algumas amigas por quem faria isso, mas não teve certeza se era recíproco.
“Você espera muito das pessoas", já lhe dissera, em diversas ocasiões, seu marido. Ele tinha razão. Ela sabia disso. Já havia se frustrado tantas e tantas vezes… Mas não conseguia viver sem acreditar nas pessoas. Sem chamar alguém de amigo com todo o significado que essa palavra carrega.
A batida em uníssono dos dois celulares na mesa do café lembrava-a das palavras do marido e fazia sentir uma solidão que parecia cavar um buraco em seu peito.
Não aprendi dizer adeus
Ando pensando muito no tema dessa newsletter, a amizade. É muito doido quando a gente percebe que as relações mudam com o tempo. De repente um amigo se afasta. De repente, aquele casal que você encontrava todo final de semana tem outras prioridades. De repente você se vê numa quarta-feira sem saber pra quem ligar para ir com você, assim de sopetão, num lançamento de livro ou exposição de arte.
🔗 Os links de hoje são sobre isso:
Mark Zuckerberg acredita que a solução para a solidão é criar amigos com IA
Parece loucura, mas o brasileiro já procura a IA para conselhos e desabafos
A OMS já considera a solidão uma ameaça à saúde pública
📚 Livros
Para quem quer ler sobre amizade, tenho 2 indicações um tanto óbvias, mas não podia deixar de citar. A primeira é a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante, que se inicia com A Amiga Genial. O segundo é Não fossem as sílabas de sábado, da Mariana Salomão Carrara. Ambas histórias trazem a amizade feminina no centro da narrativa, de forma bonita, mas também forte, controversa e complexa.
🎞️ Filme
Encontros e Desencontros (Lost in Translation - 2003)
Em meio à solidão de Tóquio, Bob, um ator em declínio, e Charlotte, jovem entediada pela ausência do marido, cruzam caminhos por acaso. Insônes e deslocados, encontram um no outro a cumplicidade silenciosa que faltava em suas vidas — um laço delicado que revela o vazio, a ternura e a beleza dos encontros humanos. Se você ainda não viu esse filme de Sofia Coppola, vale a pena colocar na lista.
🏖️ Por aí
Eu AMEI essa da
: amigos que não têm tempo pra gente ainda são nossos amigos?AMEI também esse da
, com 7 pensamentos sobre a amizadeLindo o texto de uma amizade que se foi, da
Um texto sobre presença, na news da
Os bastidores de um livro no Reality Show da
Não tem a ver com o tema, mas se for pra ler só uma news essa semana, sugiro que seja essa aqui.
Mas deixo você ir
Meu filho Rafael está aqui do meu lado, falando enquanto escrevo, pedindo para eu ir deitar com ele ou pelo menos prestar atenção na papo sobre o novo jogo de Pokemon. Como exercitar a presença dessa maneira? Impossível! Desculpa, filho, mas mamãe tem hiperfoco e chegou até o final dessa newsletter sem saber do que se trata o tal do jogo.
Ah, falando nisso, aproveita que você ainda está por aqui para ler a crônica que o Rafael escreveu para a escola e que foi parar na edição passada aqui da news.
Agora vou dar atenção ao menino. Quanto a você, nos vemos na próxima semana.
Um beijo,
Andrea
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Um tema que tem me chamado muito a atenção nesses últimos tempos. Adorei.