#142 - Entre a morte e os 14 parabéns
Uma edição sobre o luto, a lembrança e a teimosia da vida.
“Para morrer basta estar vivo”.
Eu sei. Você já disse isso mil vezes, mas não me conformei.
Não sei lidar com a morte.
Talvez por conta dos meus pais, que nunca nos levaram a velório algum até, sei lá, nossos vinte e poucos anos. Talvez por, às vezes, eu sofrer sozinha, pensando que estou no automático, que a vida está passando, as crianças estão crescendo, meus pais envelhecendo e não estou passando tempo suficiente com eles. Mas talvez seja simplesmente pelo fato de, como diz o título do livro de Rosa Monteiro1, ser ridículo pensar em não ver nunca mais ver alguém.
Hoje recebi a notícia de que meu professor de dança da infância e adolescência faleceu. Infarto fulminante. Não o via desde meu casamento, eu acho, mas ele estava lá. Dava aulas para a minha tia no clube de Jaú e sempre perguntava por mim. Ficou feliz em saber que minha filha seguia meus passos na dança. Enviei-lhe uma zine com alguns dos textos da minha newsletter. A gente se acompanhava à distância. Ele lá. Eu aqui. Com carinho mútuo, de quem conviveu por mais de quinze anos. Ele me viu crescer. Eu o vi amadurecer.
É ridículo pensar que ele não está mais aqui. Como assim? Ele não tinha idade para morrer. Ele deveria estar lá no clube, dando a aula das 8h, perguntando por mim para minha tia. Eu deveria vê-lo nas redes sociais, dançando, com o sorriso aberto, em posts felizes compartilhados pelas suas alunas.
E o que vem agora?
É preciso lidar com a burocracia, com as roupas no armário, com a casa vazia. Quem vai fazer isso? Como fica a pessoa que vai fazer isso? Como se lida com esse vazio?
Como lidar com o vazio?
Como lidar com as roupas no armário, o lugar que sobra no sofá, as redes sociais estacionadas… Como lidar com as mensagens de texto ali armazenadas no WhatsApp. Ou, pior, as mensagens de voz. A voz. As diferentes entonações. A briga que ficou sem conciliação. A piada que esperou um emoji rindo. O bom dia sem resposta.
A morte é mesmo ridícula.
Não sei porque, enquanto discorro aqui meus pensamentos, veio-me à mente Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Vou tentar fazer alguma correlação ao longo dessa escrita.
No livro, Severino foge da morte que devasta o sertão seco do nordeste. Foge do destino de uma velhice que o alcance aos trinta anos, sinalizando o fim. Mas só encontra morte no caminho rumo à vida. Mesmo assim, chega à Zona da Mata acreditando que ali não se morria como morriam no sertão, mas não demora muito para perceber que estava errado. A morte chega para todo mundo, mesmo àqueles que vivem à beira do mar. Severino desespera-se. Pensa em tirar a própria vida. Até que, em determinado momento, fica sabendo do nascimento de um bebê. A vida então se contrapõe à morte e Severino entende que, por mais difícil que seja, a vida vale a pena ser vivida, mesmo que seja uma vida severina.
Eu hoje confronto morte e vida. Um amigo querido se vai imediatamente após o dia que celebramos 8 anos da minha filha. Cantamos “parabéns a você” 14 vezes. Ela fez questão de que cantássemos a última antes que ela se deitasse para dormir. A vida, vista através dos olhos de Mariana, é uma festa.
Mariana é um raio de sol que ilumina o mais cinza dos dias. Sua alegria e vivacidade preenchem qualquer ambiente. É um ser de luz. Ao lamentar a ida do amigo, lembro-me dela. Dos 14 parabéns a você. Dos 4 bolos. Da alegria em receber uma flor ou alguns cacarecos de Guerreiras do K-Pop que comprei no Mercado Livre. Da sua intensidade.
Penso que meu amigo era como ela. Vivo. Feliz. Dançante. Uma pessoa que também enchia o ambiente ao abrir seu sorriso largo. Tinha seus problemas, seus questionamentos, suas dificuldades. Mas nos mostrou como a vida, com seus altos e baixos, vale a pena ser vivida
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
(De Morte e vida severina - João Cabral de Melo Neto)
Não aprendi dizer adeus
📚 Livro
Estive fora na semana passada. A Bahia foi meu lar. Como é bom mergulhar no mar baiano, limpar a zica e renovar o axé.
Enquanto estive lá não escrevi uma linha sequer (explicarei na próxima edição), mas em alguns poucos momentos livres, li, na espreguiçadeira da praia, o livro que está no hype no momento: Coisa de rico, de Michel Alcoforado.
Michel é um antropólogo que se dá conta que há muito mais estudos sobre pobres que sobre ricos. A partir daí, começa sua pesquisa para entender como vivem os super ricos brasileiros. Seu livro traz uma análise bem-humorada do comportamento daqueles que fazem parte das altas rodas, seus códigos de conduta e os códigos para se identificar quem é “de dentro” e quem é “de fora”.
Embora seja sua tese de doutorado, Michel não se aprofunda nos métodos de pesquisa, nas perguntas que fazia, mas conta, de forma leve e divertida, como conseguiu o acesso ao mundo dos ricos e nos traz alguma perspectiva sobre comportamento, diferenciação e desigualdade.
Em entrevista para a Vogue, o autor diz o seguinte sobre o principal insight que espera transmitir com o livro:
“Que a desigualdade brasileira não se sustenta apenas pelos privilégios dos ricos, mas também por esse impulso coletivo, quase neurótico, de produzir e preservar distâncias. Todo mundo quer parecer mais rico do que é, se aproximar de quem está acima, se afastar de quem está abaixo. E essa lógica contamina todas as classes. É isso que explica por que seguimos tão desiguais — e, pior, tão conformados com essa desigualdade".
🏖️ Por aí
Corre que ainda dá tempo de participar do desbloqueio criativo da
Uma linda metáfora sobre apagar incêndios.
Uma crônica sobre bom humor contagiante
Uma lista de musicais que todo mundo deveria assistir
Escrever sobre o ordinário. Você que me acompanha sabe que eu amo.
Como nasceu o Verdade oculta, livro de suspense da
Mas deixo você ir
Com lágrimas no olhar.
Até a próxima!
Um beijo,
Andrea
Andrea Me Conta é uma newsletter independente e gratuita, que traz uma crônica por semana, uma pitada de marketing a cada quinzena. Escrita por uma publicitária escritora, com alma de artista e que cantou parabéns a você 14 vezes em um só dia.
O livro é “A ridícula ideia de nunca mais te ver”