- Não consigo fazer o número 2 num banheiro como esse.
O ano era 2005. Estávamos no deserto australiano, em um camping com banheiro comunitário, cheio de cabines, uma ao lado da outra. Minha barriga já estava inchada, mas não adiantava. Não ia.
- Põe papel higiênico no vaso - sugeriu uma amiga.
- Como é que é?
- Pega um bolo de papel higiênico e joga no vaso. Assim ninguém ouve o “ploc” do número 2 caindo na água.
Funcionou. Era psicológico. Eu precisava de privacidade.
(Prezado leitor, desculpe-me pela descrição escatológica. Prometo que esta newsletter terá um final adequado).
Voltei do Japão no último domingo. Foram duas semanas conhecendo um pouco de um país incrível, que provavelmente vai me render assunto para mais umas duas edições da newsletter.
Antes de ir, perguntei a um amigo que havia voltado de lá há pouco, suas impressões da viagem.
- É o melhor lugar do mundo para ir ao banheiro.
Ri sem estranhamento. As privadas japonesas são famosas mesmo. Todo mundo diz, os filmes mostram e há até sátira dos Simpsons sobre isso.
Sim, elas são mesmo cheias de botões. Você usa a ducha para se limpar, ajusta posição do esguicho, a intensidade do jato, a temperatura e etc. Isso faz parte do repertório de muita gente.
Mas eu nunca tinha ouvido falar que nos banheiros públicos, além dos botões clássicos, há também o botão de “privacidade”, representado, na maior parte das vezes, por uma nota musical.
Curiosa, quando ele apareceu pra mim pela primeira vez, apertei.
O som é de água e passarinhos.
Na primeira vez que fui impactada (linguagem marqueteira aqui, hein?) por este botão, achei que o barulho de cachoeira seria a versão do “não está conseguindo fazer xixi, liga a torneira". Não tinha lá a indicação de “privacy". Pelo menos não no alfabeto ocidental. Até fiz um vídeo falando isso:
Quando comecei a ver o mesmo botão, com o mesmo som, em diversos lugares, dessa vez com a indicação de privacidade, entendi tudo. Não era necessário jogar o papel higiênico para evitar o “ploc" do número 2. Nem mesmo o xixi seria identificado pelo vizinho de cabine.
Sensacional. Não apenas pela invenção, mas pela pequena demonstração da educação japonesa, em que o respeito vai muito além de uma etiqueta social. Ele permeia todas as camadas da vida japonesa.
Respeito ao próximo e ao espaço do próximo. Ninguém é obrigado a ouvir o outro no banheiro e eu não preciso ouvir ninguém. Privacidade. O limite do meu espaço é onde começa o espaço do outro. Não é assim que deve ser?
Há outras diversas manifestações dessa educação.
No metrô, não se pode cruzar as pernas nem se sentar de pernas abertas, porque você vai ocupar parte do lugar ao seu lado, atrapalhar o outro e ocupar dois lugares, sendo que você é um só.
Nas ruas quase não há lixeiras e não há um só lixo no chão. As pessoas carregam seus lixos para descartá-los em casa. Lembra o quanto se falou do exemplo de civilidade dos japoneses durante a Copa aqui no Brasil?
Ninguém fala ao telefone nos transportes públicos. Muito menos ouve áudio no viva-voz, justamente para não incomodar os demais passageiros.
As pessoas fazem fila, não se aglomeram.
Seguem regras de uma maneira tão obediente, que chegam a ser engessados (neste ponto eu acho que um pouco de jogo de cintura faz falta).
Nos banheiros públicos outra coisa me chamou a atenção: cadeirinhas para se colocar a criança pequena, para livrar a mãe de bebês de ter de fazer xixi segurando a criança ou das súplicas para que a criança não coloque a mão aqui e ali ou não abra a porta enquanto a mãe está com calças curtas. Falei em mãe, mas preciso enfatizar que este recurso também está presente nos banheiros masculinos. Alô, pais! Se isso não é empatia, não sei mais o que é.
Sem contar a honestidade. Aliás, vou contar uma historinha sobre isso.
Chegamos em Quioto depois de umas 30 horas de viagem desde o Brasil. Paramos em uma loja de conveniência na estação de trem, compramos água e isotônico e seguimos para o hotel de táxi.
Um amigo nosso esqueceu sua sacola da loja de conveniência no carro. Não se importou tanto, afinal, eram só duas garrafinhas de água (uma delas já aberta e pela metade) e um isotônico.
Cerca de quarenta minutos depois de nos instalarmos, recebo uma ligação da recepção.
- Esquecemos o que? Ring?
- Dlink.
- Link?
- Dlink.
- Sorry, pode repetir?
- Dlinks, waler.
- Ah… drinks!
O taxista havia voltado ao hotel para devolver as bebidas do meu amigo.
De novo voltamos a ele, o respeito.
A cultura japonesa é muito fascinante. Desde pequenos, os japoneses aprendem sobre a consciência do outro, a disciplina, o respeito ao bem público e ao meio ambiente. Expressam a beleza desse aprendizado em gestos delicados, como o uso da linguagem polida e a prática da reverência.
Aliás, curvar-se, um ato tão enraizado na cultura do Japão, é uma forma tangível de demonstrar deferência e humildade em relação aos outros. É o reconhecimento mais profundo do valor que existe em cada pessoa. É lindo.
Então, volto do Japão assim, encantada tanto com o desabrochar precoce de uma ou outra cerejeira no início da primavera, quanto com a beleza da cortesia e gentileza japonesa.
Não aprendi dizer adeus
🤸🏻♀️ Japoneses capoeiristas que viralizaram no Twitter e no TikTok.
💀 O pior é que a galera se lembrou do rapaz do necrotério.
🧻 O projeto Tokyo Toilet transformou 17 banheiros públicos em Shibuya City, Tóquio, em instalações modernas e convidativas, em parceria com a Fundação Nippon e com a colaboração de 16 arquitetos e designers renomados.
🇫🇷 Não é sobre o Japão e sim sobre a França: amei o Netflix En France, um projeto com guias turísticos franceses de lugares de vários personagens de séries da Netflix. Feito em parceria com Explore France.
🍭 Estou fascinada com a exposição imersiva do Willy Wonka em Glasgow, que fez um anúncio com inteligência artificial, mas a realidade era completamente outra.
Mas deixo você ir
Mas não sem antes me desculpar pelas duas semanas de hiato desta newsletter. Achei que escreveria do Japão. Vontade não me faltou, mas tempo sim.
Estamos de volta à programação normal, com muito respeito.
Arigatô!
Andrea
Andrea Nunes é publicitária de formação, comunicadora do agronegócio de profissão e escritora por paixão. Aqui compartilho, entre crônicas e links, alguns insights do mundo da comunicação.
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Já tinha vontade de conhecer o Japão, imagina agora! Que lugar incrível. Obrigada por compartilhar essa experiência com a gente.
PS: rindo muito da exposição do Willy Wonka hahahaha
Ótimo texto ..obrigado